Nos últimos cinco anos assistimos diversas mudanças no comportamento da sociedade brasileira, especialmente após as manifestações ocorridas em 2013. De lá para cá, muita coisa aconteceu, mas, de imediato, a impressão geral era de que tudo havia voltado à "normalidade", ou seja, à velha postura geral, de desinteresse pela coisa política e das ações que interferem na vida de todos.
Só que nos últimos tempos, especialmente após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, a população brasileira tem dado sinais de que de fato, todos estamos, mesmo que de maneira totalmente equivocada, envolvidos e participando das questões políticas. Nos últimos meses teve início uma verdadeira enxurrada de postagens, opiniões e diversos tipos de casos de envolvimento político, por parte da população comum. Cada um expressando seus posicionamentos e dando início a um embate ideológico entre as chamadas direita e esquerda. O que quero analisar aqui, não é a validade ou não, de candidato A, B ou C, mas sim, a atitude da população, em sua relação com a política e os possíveis impactos disso, inclusive nas relações democráticas globais.
Me parece que o surgimento dos atuais candidatos de extrema direita, deram nova voz a uma parcela da população que, desde o fim da infame ditadura civil-militar (1964-1985), esteve recolhida aos seus "guetos", onde eles não puderam externar livremente seu posicionamento, inclusive de apologia abertamente nazi-fascista. Acontece que, após a oficialização de um candidato, que prega abertamente, seus discursos de ódio contra grupos específicos da sociedade, essa população, até então "marginalizada", sentiu que de repente, poderia falar e tal qual ocorreu com a chamada esquerda, no período pós 1985, agora eles podem respirar livremente e soltar seu grito reprimido por tanto tempo.
Na última semana, o fatídico episódio do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, fez com que vários setores da sociedade externassem seus posicionamentos ideológicos, via redes sociais e também nas ruas pelo país. Eis que, de repente, ouviu-se a voz de policiais, juízes, desembargadores e uma grande leva de pessoas, que nem sequer sabiam de fato, de que se tratava todo aquele alvoroço. Foi possível observar como é que as pessoas, inclusive aquelas que são responsáveis por zelar pela segurança da população, julgar, ou legislar, pensam no mais profundo de seus subconscientes. Até então, havia no senso comum, a ideia de que essas pessoas não externavam seus pontos de vista, justamente por conta de suas posições ou cargos.
Agora ficou bem claro, para o mundo todo ver, como é que o Brasil funciona de fato. A hipocrisia que todo brasileiro conhece desde cedo, agora foi escancarada sob a luz da liberdade de expressão. Os últimos dois ou três meses, trouxeram à baila, o DNA da formação do povo brasileiro, com todo o seu rancor, diferenças sociais, e claro, a sua beleza também. Entre as muitas manifestações de intolerância, também foi possível assistir e ler que há uma parcela da população que já conseguiu dar o salto qualitativo e se desprender do ranço da mentalidade escravista, da hipocrisia religiosa e passar a lidar e conviver com a diferença de forma mais harmoniosa. Daqui por diante, é possível que tenhamos uma mudança, para melhor nesse sentido, da tolerância e do respeito àquele que pensa de maneira diferente do grande rebanho.
Porém, ainda existem fatos que podem nos levar a uma leitura pessimista para o Brasil no século XXI. Parece que estamos diante de uma grande mudança e, grandes mudanças quase sempre acontecem depois de cataclismos. A própria história brasileira é repleta de eventos que foram catastróficos e precederam mudanças radicais. É possível que tenhamos inclusive, que enfrentar uma guerra civil, que não seria boa para ninguém, mas, diante do porte das divergências que se evidenciam, é possível que essas diferenças só possam ser resolvidas através do caos absoluto, afinal, estamos diante de ódios e diferenças seculares que sempre foram mascaradas, em nome da "boa convivência" geral. Existe muita intolerância que foi encoberta por séculos, sob o manto da hipocrisia e, é justamente esse fenômeno que, talvez tenha chegado o momento do Brasil encarar de frente, para só então superar e seguir adiante. Mas qual será o preço a se pagar, por essa metamorfose social?
A intolerância racial, por exemplo, demonstra que os quase quatrocentos anos de sistema escravista não ficaram limitados ao contexto do século XIX, quando a escravidão foi tornada ilegal. Ela ainda persiste, inclusive no âmago de nossas instituições governamentais e inclusive a nossa cultura é permeada pela mentalidade escravista e escrava. Ainda somos uma nação muito jovem e, como tal, ainda estamos nos acostumando com o novo, ou seja, com o modelo diferente daquele que fundou toda a nossa forma de ser, enquanto nação. Essas palavras, já não são mais algo a ser desvendado por cientistas sociais ou filósofos, o senso comum já está de posse dessas informações e já construiu o seu ideário. Aqui a internet cumpriu e cumpre seu papel muito bem. Resta entendermos agora, quais serão os processos para se chegar à concretização desse país ideal, que sempre fez parte dos desejos mais profundos de sambistas, escritores, artistas e de qualquer um que queira compartilhar um lugar saudável para se viver.
Mas, por que essas mudanças importam tanto? Porque a meu ver, será do modelo criado a partir dos escombros desse Brasil em que vivemos hoje, que o mundo vai direcionar seu modelo democrático. Sim, estou sendo bastante pretensioso em minha análise, pois, acredito que o modelo democrático atual, tenha muito a aprender com as experiências brasileiras. As maiores potências globais da atualidade não têm interesses apenas e tão somente exploratórios, sobre o Brasil. Penso que podemos demonstrar ao mundo como se cria uma nação, com mais justeza, essencialmente por sermos jovens e ainda termos inúmeras opções pela frente. Somos uma espécie de laboratório para a democracia global.
É possível que essa nova sociedade brasileira já tenha se iniciado, bem debaixo dos nossos olhos, porque os eventos atuais demonstram que vivemos um período de disputa intensa, mas também é fato que qualquer um dos lados, aos ser vencido, não se dará por derrotado e é possível que esse seja o começo dessa mudança radical. Podemos fazer milhares de ilações sobre a influência internacional, nas próximas decisões políticas, mas há uma grande vontade, especialmente entre os mais jovens, de modificar o atual cenário, onde as instituições estão se desintegrando e os representantes públicos já não são capazes de responder aos anseios das diferentes populações. Vivemos em um tempo onde o modelo já moribundo, se mantém apenas pelas conveniências de grupos que ainda detém o poder econômico, mas é possível que esse modelo também esteja com seus dias contados. Assim sendo, acredito que é uma questão de tempo, até o próximo jovem genial surgir para apresentar ao mundo um novo esquema, onde essas regras atuais não farão o menor sentido.
Rubens Almeida é professor de Filosofia da rede pública de ensino paulista, desde 2006.