segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Kant e a Mentira

por MARIO GUERREIRO


Em um ensaio publicado em 1797, Über ein vermeintliches Recht, aus Menschenliebe zu lügen (Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens) [Kant, 1986], o filósofo de Königsberg não só fez referência a um ensaio de Benjamin Constant como também citou uma passagem crucial do mesmo em que está claramente exposta a tese que ele, Kant, pretendia refutar. Eis a passagem de Des réactions politiques (As reações políticas):


“O princípio moral de que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado incondicionalmente e isoladamente, (o grifo é nosso) tornaria impossível qualquer sociedade. Temos a prova disso nas conseqüências diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira seria um crime em relação a um assassino que nos perguntasse se o nosso amigo, perseguido por ele, não estaria refugiado em nossa casa. Dizer a verdade é um dever. O conceito de dever é inseparável do de direito: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de um outro. Lá onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àqueles que têm um direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito a uma verdade que possa prejudicar os outros” [Constant citado por Kant e republicado em Boituzat, 1993, pp.102-109, o grifo é nosso).


Como se pode depreender da passagem acima, Constant não está, de nenhum modo, rejeitando o princípio moral da veracidade ou sinceridade (não-mentira), mas sim deixando claro que o mesmo tem de comportar exceções, de tal modo que não acarrete uma drástica e altamente indesejável conseqüência: a de tornar simplesmente inviável a sociabilidade. Em outras palavras: ele está aceitando uma regra de conduta universal, mas, ao mesmo tempo, admitindo que há exceções em que a mentira passa a ser moralmente aceitável. Malgrado ele não tenha explicitado como a completa ausência de mentiras proferidas pelos socii resultaria na insociabilidade, não cremos que seja nem um pouco difícil mostrar tal coisa, porém não pretendemos fazer isto no presente momento. Preferimos citar uma passagem em que A.Comte-Sponville começa comentando o escólio da Proposição 72 da Ética de Spinoza – com o qual se mostra de pleno acordo – para contrastá-lo com a posição kantiana – com a qual se mostra em completo desacordo, e nós também.


“A boa-fé é uma virtude, é claro, o que a mentira não poderia ser. Mas isto não quer dizer que toda mentira seja condenável nem, a fortiori, que devamos sempre nos proibir de mentir. Nenhuma mentira é livre, por certo, mas quem pode ser sempre livre? E como o seríamos, diante dos maus, dos ignorantes, dos fanáticos, quando eles são os mais fortes, quando a sinceridade para com eles seria cúmplice ou suicida? Caute... A mentira nunca é uma virtude, mas a tolice também não, mas o suicídio também não. Simplesmente, às vezes é preciso se contentar com o mal menor.” (Comte-Sponville, 1995, pp.120-1, o grifo é nosso).


Kant vai muito mais longe e muito mais claramente. A mentira não apenas nunca é uma virtude, como é sempre uma falta, sempre um crime, sempre uma indignidade. É que a veracidade, que é seu contrário, é “um dever absoluto que vale em todas as circunstâncias” e que, sendo “totalmente incondicionado”, não poderia admitir a menor exceção “a uma regra que, por sua própria essência, não tolera nenhuma” [o grifo é nosso]. Isto equivale a pensar, objetava Benjamin Constant, que mesmo “para assassinos que lhe perguntassem se seu amigo, que eles perseguem, não está refugiado em sua casa, a mentira seria um crime”. Suponhamos que estamos na Alemanha durante o nazismo…


Suponhamos que você escondeu um judeu perseguido pela Gestapo no sótão da sua casa. Suponhamos que três agentes da polícia de Hitler batem na sua porta e perguntam: “O senhor por acaso viu, seu vizinho, um judeu chamado Jakob Rosenthal ?” Como bom kantiano e para manter a coerência em relação aos princípios éticos do mestre, você teria que dizer: “Não só o vi como também o escondi no sótão”. Com isto você estaria ferindo gravemente a Ética e também o próprio pé em que você deu um tiro (pois esconder judeus era crime grave na Alemanha nacional-socialista). E tudo isto só para não mentir para reles nazistas!


“Mas Kant não se deixa impressionar por tão pouco (…) A veracidade é um “mandamento da razão, que é sagrado, absolutamente imperativo, que não pode ser limitado por nenhuma conveniência”, nem mesmo a conservação da vida de outrem ou da própria”. [Comte-Sponville, “Da boa–fé” em Comte-Sponville (1995, pp.220-1)]. Prima facie, a posição de Kant tem um desagradável odor de fanatismo, não o daquele tipo que se nutre de poderosas paixões, porém daquel’outro que procura se fundamentar na razão. Resta ver se esta é mesmo seu fundamento ou seu afundamento.


Constant fez uma alusão a Kant ao dizer “um filósofo alemão”, assim como Voltaire fazia uma alusão a Leibniz ao dizer “certo metafísico alemão” num de seus contos (Voltaire, 1979), com a diferença de que Leibniz já estava morto e, ainda que vivo estivesse, poderia não querer colocar a carapuça, porém Kant não só estava vivo como também considerou que a caracterização feita por Constant dispensava qualquer referência nominal. Era dele mesmo, Immanuel Kant, de quem o filósofo suiço-francês estava falando e insinuando que estava em jogo um rematado disparate, une sottise philosophique: considerar crime um indivíduo mentir para um assassino, de modo a proteger a vida de um amigo. Disto se conclui que nem todos os filósofos são possuidores de bom senso: não só não o apreciam como também o agridem violentamente!


Realmente, somos compelidos a admitir tal coisa é agredir fortemente o mais elementar bom senso, mas esta é uma virtude que nem sempre foi cultivada nos séculos XVIII e XIX e tem se tornado em via de extinção na assim chamada “filosofia pós-moderna” neste começo do século XXI. Estava, pois, redondamente equivocado Descartes quando afirmou, na abertura de seu Discurso sobre o Método: “O bom senso é a coisa deste mundo mais bem compartilhada” (Descartes,1953). Antes fosse, antes fosse…


“Crime” talvez seja uma palavra demasiadamente forte, uma vez que o exemplo oferecido por Constant não caracterizava um falso testemunho proferido diante de uma corte judicial, porém uma mentira dita por uma pessoa comum no contexto da vida cotidiana. Mas se é seguro que Kant não teria qualificado tal coisa como um ato criminoso, é igualmente seguro que ele a teria considerado como um ato moralmente reprovável. Para ele, não havia circunstância real ou possível capaz de justificar a enunciação de uma mentira. Morrer, se preciso for, mentir nunca! Bravo!


Lembremos que, diferentemente do homo medius (homem comum), o herói põe sua honra acima de sua própria vida. Convenhamos que o herói é uma ilustre exceção do ser humano. Ao homem comum, aplica-se o provérbio: “Mais vale um covarde vivo do que um herói morto”. Talvez isto só não tenha valor para muçulmanos dispostos a morrer pelo Islam e ir para o paraíso, com suas fontes d’água cristalina, frutas deliciosas e onde lindas virgens de seios arredondados, aguardam a chegada do mártir (não estamos inventando: certifique-se disto abrindo O Corão (Al Koran) e lendo como ele descreve o paraíso…).


Concluindo seu pensamento, Constant assume uma dicotomia entre: aqueles que têm direito à verdade / aqueles que não têm direito à verdade, restringindo a obrigação moral de um falante só dizer a verdade em relação aos primeiros e considerando que a verdade torna-se algo moralmente indesejável quando sua enunciação é capaz de trazer conseqüências prejudicando seriamente a si mesmo ou outro, ou seja: uma situação em que o ato de dizer a verdade pode concorrer para a ocorrência de um mal que a mentira poderia ter evitado ou ao menos não teria favorecido.


Diante disto, Kant alega que há na argumentação de Constant um próton pseudos, bela expressão grega devendo ser entendida como equívoco de base ou seja: uma proposição falsa, que está na base de um discurso e da qual decorrem outras proposições igualmente falsas. E, de acordo com o próprio Kant [1986, p.32], tal proposição é “Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àquele que tem direito à verdade”. Kant recusa esta particularização, alegando que todos indistintamente têm um direito à verdade, inclusive um criminoso prestes a cometer um crime que poderia ter sido evitado ou ao menos não favorecido, caso alguém lhe dissesse um mentira [vide 4.47]. Para Kant, “Este dever de dizer a verdade não reconhece nenhuma distinção entre pessoas diante das quais temos esse dever e pessoas diante das quais não temos. Trata-se de um dever incondicionado, válido em todas as circunstâncias.” (Kant, 2000, p. 45).


Justamente baseado nessa generalização abusiva, M. Rader (1964, p.155) desfere uma crítica devastadora à ética kantiana e conclui dizendo algo que nos parece extremamente sensato: “Muito poucos filósofos ou leigos concordariam com Kant” [ obs. Rader tem em mente filósofos anglófonos como ele]. Mas não é a primeira nem será a última vez que um grande filósofo continental (i.e. europeu não-britânico) despreza solenemente o que é extremamente plausível e sensato e acaba angariando uma legião de seguidores fanatizados por suas idéias. De modo a fundamentar sua alegação, ele começa fazendo uma asserção forte, talvez demasiadamente forte: “A expressão ‘ter um direito à verdade’ é desprovida de sentido”. Supondo que fosse, por uma questão de óbvia decorrência, ‘não ter um direito à verdade’ teria de ser igualmente considerada sheer nonsense (puro contra-senso). Mas devemos aceitar tal coisa? Não há mesmo nenhum contexto frasal nem sentencial em que a referida expressão possa ter sentido?


Quando por exemplo, numa corte judicial da terra de Benjamin Franklin, uma testemunha é obrigada a pôr sua mão sobre a Bíblia e proferir o dito protocolar: “Juro dizer a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade”, por acaso isto não é um dever legal de todo e qualquer indivíduo que comparece a uma corte judicial na condição de testemunha? Ora, com base no princípio de que a todo dever tem de corresponder um direito e vice-versa, não se pode inferir que a corte tem direito de ouvir a verdade, o que acarreta o dever da testemunha de dizê-la?! Caso ela mentisse, além de contrariar o mandamento da Lei Mosaica – Não prestarás falso testemunho – violaria também a lei do direito positivo, pois uma testemunha dizer algo que possa desorientar o rumo de um processo é uma infração da lei. Contudo, caso um indivíduo esteja num processo, não na condição de testemunha, porém na de indiciado – o que é papel jurídico notadamente distinto – a Constituição Americana, em sua Quinta Emenda, concede a ele o direito de permanecer em silêncio e até mesmo o de mentir, pois entende que… nor shall [any person] be compelled in any criminal case to be a witness against himself (ou seja: … nem qualquer pessoa, em qualquer caso criminal, poderá ser obrigada a testemunhar contra si própria). O espírito da lei é de uma clareza cristalina: não é razoável exigir de um indivíduo humano que ele não se defenda da melhor maneira que puder. E é justamente por isto que, entre nós, isto é chamado dedireito de ampla defesa e é assegurado pela Constituição de 1988.


* Texto extraído de Mario A.L.Guerreiro: Sete Tipos de Mentira (inédito).


Revista Jus Vigilantibus, Segunda-feira, 14 de janeiro de 2008


Fonte: Mundus est Fabula



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